I. Da Tradição à Transformação
Originalmente, o amicus curiae surgiu como um colaborador eventual do Poder Judiciário. Na literalidade do nome exercia o papel de um “amigo da corte”, alguém que, com a devida neutralidade, sem demonstrar interesse direto na lide, oferecia subsídios técnicos valiosos ao julgador. Essa figura se destacava especialmente nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, onde questões complexas exigem uma análise mais profunda e plural.
Por outro lado, a figura da “intervenção de terceiros” sempre teve como traço definidor a defesa de interesses próprios, manifestados incidentalmente nos autos do processo. Modalidades como a “assistência”, “denunciação da lide” e o “chamamento ao processo” caracterizam-se na franca manifestação do interesse em um determinado resultado quando do deslinde da demanda, noutras palavras é nítida a parcialidade e vínculo jurídico direto com o resultado do processo.
Nesse modelo, o terceiro atua para proteger direitos subjetivos seus, assumindo posição semelhante à das partes principais.
II. O Marco do CPC de 2015
Com a entrada em vigor do novo CPC, em 2015, o cenário sofreu uma importante inflexão. Agora integrando Livro III (DOS SUJEITOS DO PROCESSO) no título III (DA INTERVENÇÃO DE TERCEIROS) no Capítulo V (DO AMICUS CURIAE) adveio o comando normativo encartado no artigo 138, ao prever expressamente a possibilidade dessa figura jurídica intervir em qualquer processo de competência originária ou recursal dos tribunais.
E mais, passou a atribuir-lhe prerrogativas que antes não estavam claramente delineadas, como a possibilidade de interpor recursos em determinadas hipóteses, leia-se oposição de embargos de declaração e quando houver julgamento de incidente de demandas repetitivas.
Essa alteração normativa transformou aquilo que se adornava de mero parecer opinativo, ainda que acentuada relevância no deslinde da questão, numa das formas de intervenção de terceiros nos autos do processo, com a prerrogativa de exercer, ainda que de forma parcial e limitada a determinadas circunstâncias, a postulação recursal, inclusive com efeitos devolutivos e suspensivos. E mais, admitido nos autos por decisão irrecorrível.
Ao ser formalmente incluído no rol dessas intervenções externas de terceiros aos autos, essa figura deixou de ser um “mero auxiliar do juízo” para se tornar, em certos contextos, uma voz com peso relevante na condução do processo, sem estar mais limitado a demonstração de imparcialidade e desinteresse no resultado da causa.
III. Repercussões na Prática Processual
A ampliação das prerrogativas do amicus curiae gerou efeitos significativos no processo. Hoje, essa figura pode influenciar ativamente o resultado de um julgamento, especialmente quando sua contribuição técnica é essencial para a compreensão da matéria em debate. Note-se podendo-se ter, alhures, um terceiro que interessado na lide, é dotado de capacidade técnica intrínseca, o que exige uma atuação responsável, sempre orientada pelos princípios da ética, do contraditório e da boa-fé processual.
Contudo, vale lembrar que, embora o CPC/2015 tenha conferido essa alteração ao amicus curiae, especificamente no que for tocante as ações de controle concentrado como as AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE (ADIs) permanecem reguladas por normas próprias, leia-se Lei Federal nº 9.868/1999.
Ali, subordinado aos comandos normativos do texto em comento, remanesce a manifesta diferenciação da intervenção de terceiros, cujo ingresso é expressamente vedado (art. 7°) consolidando assim que o auxílio externo do suposto “amigo da corte”, não integraria o trio actum personarum, mesmo, apesar da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), admitir a recorribilidade da decisão que indefere o seu ingresso, mas, repise-se, somente nesse caso.
IV. Comparando as Figuras: Pontos de Convergência e Distinção
Entretanto, apesar dessa aproximação recente, no que concerne a ótica de interesse processual, o amicus curiae e a “intervenção de terceiros” ambos ainda tendem a cumprir papéis manifestamente diferentes dentro do processo, ao que submetidos a efeitos distintos sob a ótica de integração da lide.
Enquanto o primeiro, apesar de não mais necessitar imparcialidade, tem a finalidade principal de enriquecer o debate e auxiliar na formação de uma decisão mais justa e bem fundamentada, o segundo visa diretamente proteger interesses jurídicos próprios.
Nesse sentido, a natureza colaborativa do amicus curiae, apesar de mitigada pela capacidade recursal, ainda se distingue claramente da atuação parcial e interessada das outras modalidades de intervenção, remanescendo como a possibilidade de ampliação da participação de vozes qualificadas e pluralizando a discussão do tema ali debatido.
Por óbvio, dentro de uma sistemática processual que não venha a se tornar um mecanismo protelatório ou de tumulto na tramitação dos autos, cabendo ao magistrado fazer essa apreciação na casuística do processo.
V. Conclusão
A evolução da figura do amicus curiae no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após o advento do CPC de 2015, reflete um movimento de abertura do processo judicial à pluralidade de vozes qualificadas que efetivamente tenham algo a auxiliar o Juízo.
Essa foi a sistemática eleita.
Ao permitir que entidades e especialistas contribuam com subsídios técnicos e jurídicos relevantes, mesmo sem interesse direto na lide, o sistema processual se torna mais permeável à complexidade das questões contemporâneas.
Embora tenha se aproximado, em aspectos mais rasos, da intervenção tradicional de terceiros, o amicus curiae mantém uma identidade própria, marcada pela independência e pela manutenção do compromisso com a formação de decisões tecnicamente mais acertadas.
Sua incorporação ao rol das intervenções processuais não representa uma perda absoluta da neutralidade, mas sim um reconhecimento de que a participação democrática e técnica é essencial para a construção de um Judiciário mais sensível, informado e legítimo.
Assim, guardada a sua operacionalidade na tramitação dos autos, o fortalecimento do papel do amicus curiae deve ser compreendido como parte de um esforço maior, por uma justiça mais inclusiva, onde o conhecimento especializado e o interesse público caminham lado a lado na busca por soluções jurídicas mais justas e eficazes.
LUIZ FELIPE BUAIZ ANDRADE
OAB/DF 24.775
EDUARDO MOREIRA CORRÊA
ACADÊMICO EM DIREITO