SUMÁRIO: 1. O Direito Do Trabalho no Brasil; 2 Dos Requisitos para o Reconhecimento do Vínculo Empregatício; 2.1. Parassubordinação; 3. O caso Uber BV and others v. Aslam and others; 4. A relação jurídica entre a Uber e motoristas e sua regulamentação; 5. Conclusão.
RESUMO
O artigo analisa a “uberização” das relações de trabalho à luz do caso Uber BV and others v. Aslam and others, julgado pela Suprema Corte do Reino Unido, e sua influência no Direito do Trabalho brasileiro. Discute os requisitos para o reconhecimento do vínculo empregatício, o conceito de parassubordinação e a relação jurídica entre a Uber e os motoristas, destacando a necessidade de regulamentação para proteger direitos nesse novo cenário tecnológico.
Palavras-chave: Uberização; Parassubordinação; Direito do Trabalho.
ABSTRACT
This article examines the “uberization” of labor relations through the lens of the Uber BV and others v. Aslam and others case, decided by the UK Supreme Court, and its impact on Brazilian labor law. It discusses the requirements for recognizing employment relationships, the concept of parasubordination, and the legal relationship between Uber and its drivers, emphasizing the need for regulation to protect workers’ rights in this technological context.
Keywords: Uberization; Parasubordination; Labor Law.
1. O Direito Do Trabalho no Brasil
O Brasil, classificado como país em desenvolvimento, possui uma trajetória histórica singular marcada pela colonização portuguesa iniciada em 1500. Essa colonização trouxe impactos profundos ao contexto social e econômico da época, considerando que os povos indígenas, que habitavam o território antes da chegada dos colonizadores, possuíam estruturas organizacionais distintas das sociedades europeias.
Enquanto a Europa vivenciava avanços expressivos no desenvolvimento social e econômico, o Brasil enfrentava desafios inerentes a sua condição de colônia. Apesar de ter sido colonizado por Portugal, uma das nações mais influentes durante o período das grandes navegações, a evolução brasileira foi marcada por características e dinâmicas próprias, influenciadas pelo atraso estrutural imposto pelo modelo colonial.
Historicamente, a introdução da mão de obra escrava africana foi um elemento central na economia brasileira. Essa prática persistiu por séculos, e o Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir oficialmente a escravidão, apenas em 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Enquanto nações como a Dinamarca (1792), Inglaterra (1807) e Estados Unidos (1863) já haviam extinguido a escravidão décadas antes, a população escravizada no Brasil continuou sendo explorada sem qualquer proteção legal ou reconhecimento de direitos.
Nesse período, os trabalhadores escravizados não eram considerados cidadãos e muito menos sujeitos de direitos. O trabalho não era uma escolha, mas uma imposição brutal, afastando qualquer possibilidade de caracterização de uma relação de emprego nos moldes jurídicos modernos. A abolição da escravidão, embora formalmente decretada em 1888, demorou a se concretizar de maneira efetiva, uma vez que os libertos enfrentavam profundas barreiras sociais e econômicas para alcançar uma verdadeira emancipação.
A transição para uma economia capitalista também foi lenta no Brasil. Enquanto países industrializados consolidavam uma classe proletária que reivindicava direitos trabalhistas, o Brasil ainda dependia amplamente de mão de obra escravizada e, posteriormente, de um sistema agrário baseado em relações precárias de trabalho. Esse atraso histórico explica, em parte, a demora na consolidação de uma legislação trabalhista robusta no país.
Os estudiosos brasileiros dividem a evolução do Direito do Trabalho no Brasil em fases. A primeira, denominada “fase pré-histórica”, abrange o período desde a colonização até a abolição da escravatura. Nessa etapa, não havia propriamente normas trabalhistas, mas sim relações de trabalho forçadas e desiguais.
A criação do Conselho Nacional do Trabalho em 1923 marcou um avanço significativo, representando o primeiro esforço institucional para regulamentar e fiscalizar as condições de trabalho, em conformidade com as diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Posteriormente, a Constituição de 1934 consolidou o papel da Justiça do Trabalho, com o artigo 122 instituindo-a formalmente para mediar os conflitos entre empregadores e empregados.
O presidente Getúlio Vargas desempenhou um papel fundamental na institucionalização do Direito do Trabalho no Brasil. Seu governo, iniciado em 1930, foi responsável pela criação do Ministério do Trabalho e, em 1939, pela formalização da Justiça do Trabalho. Em 1943, a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) sintetizou os direitos trabalhistas em um único diploma legal, inspirado pelos movimentos internacionais de proteção ao trabalhador.
Na sequência, o processo de industrialização intensificado em 1945 trouxe novas demandas ao Direito do Trabalho, embora o regime militar, instaurado em 1964, tenha restringido diversos direitos coletivos e individuais conquistados até então. A Constituição de 1967, elaborada sob um regime autoritário, refletiu esse retrocesso, limitando o alcance de direitos sociais e trabalhistas.
Portanto, a trajetória do Direito do Trabalho no Brasil é marcada por avanços e retrocessos, profundamente influenciada pelas condições históricas, sociais e econômicas. A herança colonial e escravocrata explica parte das dificuldades enfrentadas para a consolidação de um sistema jurídico que protegesse efetivamente os trabalhadores, mas os marcos institucionais do século XX estabeleceram as bases para a legislação trabalhista moderna no país.
2. Dos Requisitos para o Reconhecimento do Vínculo Empregatício
O presente trabalho foi desenvolvido a partir da reflexão sobre a natureza jurídica do vínculo de trabalho entre motoristas por aplicativo e a empresa a qual trabalham, bem como realizar uma análise comparada com decisões internacionais. Logo, anteriormente, foi necessário entender como o direito do trabalho surgiu e contribuiu com a evolução das sociedades, e será necessário neste tópico, discorrer sobre o que vem a ser um vínculo de emprego.
Ao falar-se em direito do trabalho, é necessário reafirmar, como dito anteriormente, que este é um direito fundamental. Algumas características dos direitos e garantias fundamentais são a historicidade, pois decorrem de uma evolução histórica, universalidade, em razão de não haver discriminação ou distinção de pessoas a quem esses direitos se destinam, ou seja, a todos, ilimitabilidade, pois estes direitos não são absolutos, a concorrência, pois um complementa o outro, de forma a serem utilizados cumulativamente, irrenunciabilidade, inalienabilidade e a imprescritibilidade.
A doutrina, para fins didáticos, separa os direitos fundamentais em gerações ou dimensões de direitos, sendo o termo “gerações de direitos” atribuído a Karel Vasak, destacando-se também os estudos de Norberto Bobbio sobre o tema, vejamos:
“Do ponto de vista teórico, sempre defendi — e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos — que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (Bobbio, 2004, p.9).”
Ressalte-se que este termo não significa que uma geração de direitos seja mais importante ou que supere as outras, o raciocínio a ser feito é que eles são complementares entre si. Sendo assim, os direitos fundamentais de primeira geração são aqueles conquistados pelos povos durante os reinados, em que a burguesia buscava romper com o absolutismo, a exemplo da Revolução Francesa, e a independência dos Estados Unidos, com a declaração de Virgínia.
Logo, a primeira geração/dimensão de direitos fundamentais, são os chamados direitos de liberdade, que garantem aos indivíduos certas liberdades quanto às ingerências do Estado, sendo estes, por exemplo, os direitos à liberdade de expressão, de associação, direito de o estado não interferir na propriedade privada, entre outros. Ou seja, direitos negativos, que impõe ao Estado obrigações de abstenção, chamados então de direitos negativos.
Já a segunda geração de direitos, surge no momento histórico da Pós-Guerra, ocasião em que o Estado deixa de abster-se, passando a existir a necessitando de ações afirmativas para garantir a igualdade entre seus cidadãos, que visavam o bem-estar social, sendo então os direitos de igualdade, os direitos sociais e econômicos.
Diante deste novo cenário, surgem as questões relacionadas às medidas necessárias para aplicação dessas medidas, e qual será o poder mais adequado para essas ações afirmativas.
Estes direitos estão positivados na Constituição da República, artigo. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Nos ensina Delgado:
“Se o trabalho é um direito fundamental, deve pautar-se na dignidade da pessoa humana. Por isso, quando a Constituição Federal de 1988 refere-se ao direito ao trabalho, implicitamente já está compreendido que o trabalho valorizado pelo texto constitucional é o trabalho digno. Primeiro, devido ao nexo lógico existente entre direitos fundamentais (direito fundamental ao trabalho, por exemplo) é o fundamento nuclear do Estado Democrático de Direito que é a dignidade da pessoa humana. (2006, p. 74)”
Logo, o direito do trabalho, é então um direito social, sendo então um direito fundamental de segunda geração. Ocorre que, existem também os direitos fundamentais de terceira geração, em que sua característica são os coletivos e difusos.
Como bem explica Delgado (2006), o texto constitucional vai além, pois reconhece o direito social ao trabalho como “condição da efetividade da existência digna”.
Sendo assim, o direito do trabalho pode vir a figurar também como um direito de terceira geração, eis que seus beneficiários podem ser indivíduos indeterminados, ressaltando o caráter coletivo do Direito do Trabalho. Considerando então, como um direito de segunda geração, há a necessidade de ações afirmativas do Estado para seu cumprimento.
Diante disto, é necessário identificar a quem a lei trabalhista pode ser aplicada, ou seja, ao empregado e ao empregador. Vejamos o que diz a Consolidação das Leis do Trabalho:
“Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
§ 1º – Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.”
Vejamos o conceito de empregado, conforme a Consolidação das Leis do Trabalho:
“Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único – Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.”
Conforme a legislação, não haveria então embate entre quem é trabalhador ou não, ocorre que a realidade do trabalho no Brasil não é tão simples assim, sendo necessário então recorrer a doutrina para entendermos melhor essas relações. É pacifico na doutrina, que para a caracterização do vínculo de emprego, são necessários estarem presentes cinco requisitos, a saber: ser o empregado uma pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação, a serem estudados a seguir.
Pessoa física é basicamente todo ser humano, de forma então que o Direito do Trabalho tutela apenas pessoas físicas.
O segundo requisito é pessoalidade, que diz respeito a prestação de serviço por um indivíduo específico, não podendo então, o empregado ser substituído por outro.
O terceiro requisito é a não eventualidade, sendo caracterizado pela habitualidade da prestação de serviços, para que esteja caracterizada a relação de emprego, é necessário que haja o trabalho de forma contínua. O requisito da não obrigatoriedade é muito importante, como por exemplo nas relações de serviços domésticos, em que um indivíduo que trabalha duas vezes por semana é considerado diarista, já um trabalhador que excede dois dias de trabalho semanal, possui vínculo empregatício e deve ter sua carteira assinada, conforme a Lei 150/2015:
“Art. 1º Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei.”
A onerosidade, parte do princípio que o trabalho visa o fundo econômico, sendo então, a necessidade de uma contraprestação econômica por parte do trabalhador, ou seja, é necessário que exista um pagamento, pecúnia pelo serviço prestado, existindo então, a necessidade de um salário.
Art. 29. O empregador terá o prazo de 5 (cinco) dias úteis para anotar na CTPS, em relação aos trabalhadores que admitir, a data de admissão, a remuneração e as condições especiais, se houver, facultada a adoção de sistema manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério da Economia.
§ 1º As anotações concernentes à remuneração devem especificar o salário, qualquer que seja sua forma de pagamento, seja ele em dinheiro ou em utilidades, bem como a estimativa da gorjeta.
O quinto requisito, é um dos mais importantes para a configuração do vínculo empregatício, sendo o ponto de partida para a discussão do presente estudo, a subordinação.
A subordinação necessária no direito do trabalho é a jurídica, havendo a vinculação do emprego ao empregador, e mantendo o empregador certos poderes diante do empregado. Esses poderes podem ser de direção, fiscalização e regulamentação. Para Ferreira (1986), “Subordinação deriva de sub (baixo) e ordinare (ordenar), traduzindo a noção etimológica de estado de dependência ou obediência em relação a uma hierarquia de posição ou de valores.
Como se percebe, no Direito do Trabalho a subordinação é encarada sob um prisma objetivo: ela atua sobre o modo de realização da prestação e não sobre a pessoa do trabalhador. É, portanto, incorreta, do ponto de vista jurídico, a visão subjetiva do fenômeno, isto é, que se compreenda a subordinação como atuante sobre a pessoa do trabalhador, criando-lhe certo estado de sujeição (status subjectiones). […] resultam da natureza da relação de emprego, da qualidade que lhe é ínsita e distintiva perante as demais formas de utilização do trabalho humano que já foram hegemônicas em períodos anteriores da história da humanidade: a escravidão e a servidão. (GODINHO, 2017, p. 325)
Como é sabido, as formas de trabalho estão em constante transformação, dessa forma, diante da expansão da tecnologia ocorrida a partir dos anos 2000, surgiram diversas novas formas e cargos de trabalho. Uma dessas novas formas, é objeto de estudo deste trabalho, os motoristas por aplicativo.
Um dos pontos de debate deste novo ramo do trabalho, por assim dizer, é que os motoristas por aplicativos não possuem subordinação a empresa, neste contexto, nasce o instituto da parassubordinação.
É exatamente dentro da subordinação que surge nosso debate central: os motoristas de aplicativos possuem vínculo empregatício com as empresas? Para responder esse questionamento, é necessário a análise do instituto da parassubordinação, caracterizada pela pessoalidade, continuidade e coordenação da prestação dos serviços, sendo então, uma categoria intermediária de trabalho, transitando entre o trabalho subordinado e o trabalho autônomo.
2.1. Parassubordinação
Sabe-se que há no Brasil, várias formas de relações de emprego: trabalho autônomo, freelancers, servidores estatutários e celetistas, alvo do nosso estudo. Ocorre que, com as crescentes inovações tecnológicas, surgem novas formas de trabalho, sendo assim, a legislação precisa se inovar também, para proteger esses trabalhadores.
Como vimos anteriormente, para as relações de trabalho de motoristas de aplicativo, existe um grande debate, acerca da legislação aplicada a eles, sendo que, este tema, é uma das contribuições para a crescente discussão sobre o instituto da “parassubordinação”, que veremos neste tópico.
O conceito da parassubordinação, tem origem na constatação de autonomia e subordinação, adotada pela legislação trabalhista, que considera essa relação como binária, ocorre que essas duas correntes, não são suficientes para abarcar a multiplicidade de situações de trabalhamos que temos na sociedade de hoje.
A parassubordinação então, surge como uma forma intermédia de trabalho, se destinando aquele trabalhador que não é empregado, pois não preenche o requisito da subordinação, como prevê o artigo 3º, caput da Consolidação das Leis Trabalhistas. Por outro lado, este trabalhador também não é autônomo, pois mantém uma certa dependência para com a empresa que toma seus serviços.
Desta forma, a parassubordinação é caracterizada pela pessoalidade, continuidade e coordenação na prestação do serviço por parte do trabalhador. Denis Veloso Amanthéa conceitua a parassubordinação da seguinte forma:
A parassubordinação pode ser conceituada como um contrato de colaboração coordenada e continuada, em que o prestador de serviços colabora à consecução de uma atividade de interesse da empresa, tendo seu trabalho coordenado conjuntamente com o tomador de serviços, numa relação continuada ou não eventual. (AMANTHÉA, 2008, p. 43).
O conceito da parassubordinação surge na Itália, com o artigo 409 do Código de Processo Civil Italiano, artigo incluído no ano de 1973, incumbindo que em casos de prestação de serviços de colaboração, o ônus de provar a relação de autonomia ao empregador.
Para Alves:
É a atividade empresarial de coordenar o trabalho sem subordinar o trabalhador. É ainda, a conexão funcional entre a atividade do prestador do trabalho e a organização do contratante, sendo que aquele se insere no contexto laborativo deste – no estabelecimento ou dinâmica empresarial – sem ser empregado, mas inserido em tal contexto de forma harmônica. Pode significar, ainda, que na coordenação há, em diversos casos, a organização conjunta da prestação laborativa entre contratante e contratado, cabendo exclusivamente àquele, entretanto, a responsabilidade sobre o empreendimento. (2004, p. 89)
A discussão se faz necessária no sentido de que mesmo não havendo o preenchimento de todos os requisitos característicos da relação de emprego, deveria ser assegurado a este trabalhador, pelo menos alguns dos direitos trabalhistas vigentes e aplicáveis a cada caso, como direitos fundamentais do trabalho.
Um dos pontos fundamentais do direito do trabalho, é a presunção do trabalhador como pessoa hipossuficiente diante de seu patrão, vejamos os ensinamentos do professor Maurício Godinho Delgado sobre o tema:
Princípio da Proteção — Informa este princípio que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia — o obreiro —, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho.(2017, p. 213)
Nestes casos, os motoristas de uber, devem ser considerados hipossuficientes, eis que existe fraqueza do prestador de serviços, diante da empresa que contrata esse tipo de serviço.
No Brasil, ainda não existe legislação específica para regulamentar os trabalhos que se enquadram no instituto da parassubordinação, sendo a tendência dos tribunais decidirem diante dos casos concretos que chegam a sua jurisdição.
Neste ponto, faz-se necessário uma análise sobre o contrato de trabalho dos motoristas de aplicativo, que será feita em momento posterior para fins elucidativos, mas de antemão, não há dúvidas que nessas situações deveriam prevalecer os institutos presentes nas relações de trabalho para proteção deste empregado/prestador de serviço, principalmente diante da crescente precarização do trabalho crescente nos últimos anos, em que as empresas procuram maneiras de não aplicarem os encargos e proteção trabalhistas, pois lhes é mais benéfico a contratação de serviços autônomos, que em casos de divergência são julgados pela Justiça Comum.
3. O caso Uber BV and others v. Aslam and others
O caso emblemático Uber BV and others v. Aslam and others, julgado pela Suprema Corte do Reino Unido em 2021, marca um divisor de águas nas discussões sobre a classificação trabalhista de motoristas vinculados a plataformas digitais. A decisão reconheceu os motoristas da Uber como “workers”, conferindo-lhes direitos como salário mínimo e férias remuneradas, ao contrário da tese defendida pela empresa de que seriam autônomos.
A controvérsia central residia na natureza da relação jurídica entre os motoristas e a Uber. Os motoristas alegaram subordinação e dependência econômica, enquanto a Uber sustentava que operava apenas como intermediária entre motoristas e passageiros. A empresa argumentava que os condutores eram “parceiros” autônomos, celebrando contratos diretamente com os usuários por meio do aplicativo, sem qualquer vínculo empregatício com a Uber.
A Suprema Corte analisou a questão à luz dos critérios de subordinação e controle, elementos essenciais para a caracterização do vínculo trabalhista no ordenamento britânico. Entre os fatores considerados destacaram-se:
- Controle da Remuneração: A fixação unilateral de tarifas pela Uber e a impossibilidade de negociação direta entre motoristas e passageiros evidenciaram o controle da empresa sobre a atividade.
- Subordinação Operacional: A Uber determinava as condições de trabalho, como tipos de veículos permitidos e padrões de atendimento, além de monitorar o desempenho dos motoristas por meio de classificações e taxas de aceitação de viagens.
- Sanções Disciplinadoras: A penalização por recusas frequentes de viagens, incluindo o bloqueio temporário do aplicativo, demonstrou o poder disciplinar da empresa.
- Ficção Contratual: A alegação de que motoristas firmavam contratos diretamente com passageiros foi considerada uma construção artificial, sem respaldo na realidade das relações práticas.
A decisão destacou a vulnerabilidade dos motoristas em razão da dependência econômica e da ausência de controle sobre as condições de prestação de serviços. Embora gozassem de certa liberdade para decidir quando e onde trabalhar, essa autonomia foi considerada insuficiente para descaracterizar a relação de trabalho.
A Corte concluiu que os motoristas, ao estarem conectados ao aplicativo e disponíveis para aceitar corridas, estavam efetivamente à disposição da Uber, configurando “tempo de trabalho” nos termos da Working Time Regulation 1998. Assim, foram garantidos os direitos previstos na legislação trabalhista britânica.
Essa decisão é um marco na regulação das plataformas digitais e no enfrentamento das novas formas de exploração laboral. Ao reconhecer os motoristas como trabalhadores, a Suprema Corte buscou alinhar a realidade jurídica à complexidade das relações econômicas contemporâneas, promovendo maior proteção aos indivíduos inseridos em modelos de trabalho flexíveis, mas frequentemente precários.
Tal entendimento reafirma a necessidade de revisitar conceitos tradicionais do Direito do Trabalho diante das transformações impostas pela “uberização” e pela economia de plataformas, adaptando-os às demandas de justiça social no contexto de novas tecnologias e modelos de negócios.
4. A relação jurídica entre a Uber e motoristas e sua regulamentação
A relação jurídica entre a Uber e os motoristas de aplicativo no Brasil apresenta-se como um dos temas mais controversos no Direito do Trabalho contemporâneo. O debate central gira em torno da caracterização ou não do vínculo empregatício e da consequente concessão de direitos trabalhistas. O ordenamento jurídico brasileiro, estruturado sob a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ainda opera majoritariamente a partir da dicotomia entre a relação de emprego tradicional e o trabalho autônomo. Essa limitação desafia a adequação das normas trabalhistas às novas dinâmicas laborais, especialmente aquelas promovidas pelas plataformas digitais.
De acordo com o artigo 3º da CLT, a configuração de um vínculo empregatício exige a coexistência de quatro elementos: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. A ausência de qualquer um desses requisitos afasta a relação de emprego, classificando o trabalho como autônomo. Na maioria dos casos envolvendo motoristas de aplicativo, a Justiça do Trabalho tem entendido pela ausência da subordinação jurídica, um dos pilares do vínculo empregatício.
Essa tendência é corroborada por decisões como a da 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), no Recurso de Revista nº 1000123-89.2017.5.02.0038, de 2020, onde o tribunal entendeu que a flexibilidade de horários exercida pelos motoristas inviabiliza o reconhecimento da subordinação jurídica. Similar entendimento foi adotado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, no Recurso Ordinário nº 0010586-27.2017.5.03.0185, em que a autonomia do reclamante em gerenciar suas atividades foi considerada incompatível com os critérios tradicionais de subordinação.
Entretanto, essas decisões refletem uma abordagem clássica do vínculo empregatício, desconsiderando as especificidades da relação de trabalho mediada por plataformas digitais. Ao fazê-lo, ignora-se a realidade social e econômica dos trabalhadores uberizados, marcados por uma precarização sistêmica, típica do que se denomina “trabalho uberizado”. Nesse modelo, o custo dos meios de produção, como manutenção de veículos e combustível, e os riscos da atividade recaem integralmente sobre os trabalhadores, invertendo o princípio da alteridade, consagrado no Direito do Trabalho. Como leciona Delgado (2017), é o empregador quem deve suportar os riscos do empreendimento, garantindo a proteção dos trabalhadores.
Essa precarização é potencializada pela ausência de uma regulamentação específica. Enquanto categorias como os trabalhadores domésticos e os teletrabalhadores possuem legislações próprias (LC nº 150/2015 e Lei nº 12.551/2011, respectivamente), os motoristas de aplicativo permanecem desamparados. Esse vazio normativo não é acidental, mas reflete um contexto de flexibilização laboral intensificado pela Reforma Trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467/2017), que priorizou a redução de garantias trabalhistas sob o pretexto de promover empregos e estimular a economia. Contudo, os resultados têm sido ambivalentes, com o aumento do desemprego e a precarização de relações laborais.
No contexto internacional, a decisão da Suprema Corte do Reino Unido no caso Uber BV v. Aslam and Others (2021) deve ser usada como referência. O tribunal britânico reconheceu que os motoristas de aplicativo atuam sob um contrato de trabalho, com subordinação suficiente para garantir direitos trabalhistas, como salário mínimo, férias remuneradas e proteção social. Esse entendimento foi fundamentado em elementos como o controle operacional exercido pela Uber, que define as tarifas, distribui as viagens e monitora o desempenho dos motoristas.
No Brasil, decisões como a do TST e a ausência de legislação específica contrastam com o posicionamento mais protetivo de outros países. Ainda assim, a questão está longe de ser pacificada. Recentemente, em 26/06/2024, a 3ª Turma do TST determinou a suspensão de todos os processos sobre vínculo empregatício entre motoristas de aplicativo e a Uber tramitando naquela turma até decisão do Supremo sobre o tema. O STF, ao reconhecer a repercussão geral no RE nº 1.446.336, indicou que a controvérsia envolve princípios constitucionais, como a livre iniciativa e os direitos sociais laborais, além de possuir relevância econômica e social.
O reconhecimento do vínculo empregatício ou a criação de uma nova categoria jurídica específica para trabalhadores de plataformas digitais são medidas urgentes para corrigir a desigualdade inerente a essas relações. Enquanto isso, a lacuna normativa perpetua um estado de insegurança jurídica, desproteção trabalhista e exploração econômica. A análise da experiência britânica e de outros países é essencial para o desenvolvimento de um marco regulatório brasileiro que equilibre inovação tecnológica e direitos fundamentais.
Ademais, a adoção do conceito de parassubordinação, presente na doutrina italiana, pode ser um caminho viável. Esse conceito reconhece a existência de uma relação de dependência econômica e organizacional entre as partes, mesmo sem a subordinação estrita. Assim, pode-se conceder aos motoristas de aplicativo direitos trabalhistas básicos, preservando a flexibilidade que caracteriza o modelo.
Em conclusão, o trabalho uberizado desafia os paradigmas tradicionais do Direito do Trabalho brasileiro. Sua regulamentação exige um olhar crítico, capaz de integrar os avanços tecnológicos à proteção da dignidade humana e aos valores sociais do trabalho. Sem isso, o Brasil corre o risco de perpetuar um modelo de exploração laboral incompatível com os princípios constitucionais que fundamentam a ordem jurídica trabalhista.
Sendo o modelo de operação da Uber internacional, e a relação entre a empresa e os motoristas parceiros semelhantes em diversos países e contextos, não há como se afastar a relevância e os argumentos do julgado britânico, podendo esse ser transportado com o devido cuidado e adaptações ao nosso ordenamento jurídico.
5. Conclusão
A evolução tecnológica alterou profundamente as relações laborais, desafiando modelos jurídicos tradicionais e expondo lacunas normativas em diversas jurisdições, incluindo o Brasil. O trabalho realizado por motoristas de aplicativo, impulsionado por plataformas digitais como a Uber, caracteriza-se por uma nova dinâmica laboral que combina autonomia e flexibilidade com riscos significativos de precarização. Essa realidade revela a insuficiência dos paradigmas jurídicos tradicionais para abordar adequadamente as particularidades do trabalho mediado por plataformas digitais.
Embora a flexibilidade seja um atrativo desse modelo, a ausência de regulamentação específica contribui para a exploração da força de trabalho e a deterioração das condições laborais, especialmente ao transferir integralmente para os trabalhadores os custos e riscos do empreendimento. É imperativo, portanto, repensar os critérios de reconhecimento do vínculo empregatício, adaptando-os a um contexto em que a subordinação assume novas formas, como o controle algorítmico e a gestão por plataformas digitais.
A decisão da Suprema Corte do Reino Unido no caso Uber BV v. Aslam and Others destaca-se como um marco jurídico internacional, ao reconhecer que motoristas de aplicativo ocupam uma categoria intermediária (workers), com direito a garantias trabalhistas essenciais. Essa abordagem inovadora, fundamentada na dependência econômica e na influência operacional da plataforma, oferece um modelo que pode inspirar o ordenamento jurídico brasileiro na busca por maior equilíbrio entre flexibilidade e proteção trabalhista.
Embora a jurisprudência brasileira, até o momento, tenda a negar o vínculo empregatício, a análise comparada demonstra que há alternativas viáveis para garantir direitos básicos sem comprometer a inovação e a livre iniciativa. A experiência britânica indica que a criação de uma categoria jurídica específica, alinhada às realidades econômicas e sociais contemporâneas, pode ser uma solução efetiva para proteger os trabalhadores uberizados.
Ademais, é fundamental que os Tribunais brasileiros adotem uma postura crítica e atualizada, reconhecendo que as normas trabalhistas, como instrumentos de interesse público, devem ser aplicadas de forma a garantir a dignidade humana e os direitos fundamentais dos trabalhadores, independentemente das inovações contratuais promovidas por plataformas digitais.
Conclui-se que o exemplo britânico não apenas reflete uma tendência global de maior proteção aos trabalhadores de plataformas digitais, mas também evidencia a necessidade de o Brasil revisar sua legislação e jurisprudência. A adoção de critérios mais flexíveis e a utilização do direito comparado podem ser passos decisivos para superar o impasse jurídico e proteger os trabalhadores uberizados, garantindo-lhes condições dignas de trabalho e preservando os princípios constitucionais que fundamentam o Direito do Trabalho brasileiro.
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