PENHORA DOS BENS DO SÓCIO PARA PAGAMENTO DE DÍVIDAS DA PESSOA JURÍDICA
Empreender no Brasil é desafio hercúleo e só quem já trilhou esse caminho sabe que os obstáculos e os riscos, sem falar da burocracia, são enormes.
Um dos maiores receios daqueles que pretendem se tornar empresários é o de ter que responder, com seus bens particulares, por dívidas que porventura a pessoa jurídica venha a assumir e não consiga honrar.
Em primeiro lugar, é importante deixar claro que a natureza da dívida tem relevância no que diz respeito às consequências legais decorrentes da inadimplência.
Isso significa dizer que cada tipo de compromisso inadimplido obedece a procedimento próprio e ordem na cobrança, sendo as de natureza tributária as que mais causam impacto.
Pontua-se também que é importante observar qual é o regime societário da empresa ou em qual virá a se enquadrar.
Isso porque há regimes em que, por sua natureza, o sócio ou proprietário respondem de forma ilimitada por dívidas contraídas pela empresa, haja vista o patrimônio pessoal e empresarial serem unificados, de modo que os bens particulares podem ser atingidos. Esse é o caso, por exemplo, das Sociedades Simples, dos Microempreendedores Individuais (MEI) e das Microempresas (ME), dentre outros.
As sociedades de responsabilidade limitada, tais como Sociedade Empresária Limitada (Ltda) e Sociedade Limitada Unipessoal, possuem o patrimônio pessoal dos sócios separado do patrimônio da empresa.
Nesse tipo de sociedade, portanto, a regra é que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas contraídas pela empresa, daí surge a razão do termo “limitada”.
Nesse sentido, atente-se para a lição do professor Fábio Ulhoa Coelho:
“Na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionados ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade titular de tais direitos e devedora dessas obrigações.” (COELHO, 2004, p. 14)
Entretanto, mesmo nas sociedades de responsabilidade limitada, a responsabilização pessoal dos sócios e administradores ocorre quando estes praticam atos com excesso de poder, infração à lei, ao contrato social ou estatutos, com desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Nesse caso, em resumo e de modo geral, é de se dizer que sim, a penhora de bens do sócio é possível para que sejam pagas as dívidas da empresa, mas para que isso ocorra o sócio tem que ter administrado aquela pessoa jurídica de maneira equivocada e com objetivos inidôneos, desviando o objetivo social e confundindo o seu patrimônio pessoal com o da empresa.
Nas palavras de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, o desvio de finalidade assim se traduz:
“Se a pessoa jurídica se põe a praticar atos ilícitos ou incompatíveis com sua atividade autorizada, bem como se com sua atividade favorece o enriquecimento de seus sócios e sua derrocada administrativa e econômica, dá-se ocasião de o sistema de direito desconsiderar sua personalidade e alcançar o patrimônio das pessoas que se ocultam por detrás de sua existência jurídica.” (NERY JÚNIOR; NERY, 2008, p. 249).
A responsabilização tributária do sócio por substituição, por exemplo, tem suas hipóteses previstas no artigo 135, III, do Código Tributário Nacional[1], que diz que “são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatutos, os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”.
Da leitura desse dispositivo, conclui-se que os diretores, gerentes ou representantes das pessoas jurídicas de direito privado podem ser responsabilizados pessoalmente, não por serem sócios, quotistas ou acionistas da pessoa jurídica, mas por exercerem ou terem exercido sua administração, isto é, por possuírem ou terem possuído poderes de gerência por meio dos quais cometeram abusos, excessos ou infrações à lei, estatuto ou contrato social.
Não basta ao credor, especialmente quando esse credor é o Estado, incluir o nome e CPF do sócio ou corresponsável no polo passivo da cobrança e/ou de eventual execução fiscal.
É necessário o esgotamento dos meios e tentativas de recebimento pela empresa, para que num segundo momento, após prova de preenchimento dos requisitos, seja requerida a desconsideração da personalidade jurídica e, aí sim, perseguir o patrimônio pessoal daquele sócio com a sua pretensão creditória.
Não basta um simples redirecionamento da cobrança e não pode figurar na condição de corresponsável das dívidas um sócio ou administrador que não administrou aquela pessoa jurídica com desvio de finalidade, confusão patrimonial, excesso de poder ou infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da empresa.
Se não demonstrada pelo credor a ocorrência de quaisquer das hipóteses de responsabilidade tributária por substituição, está seguro o patrimônio pessoal do sócio e é desautorizado o redirecionamento, por exemplo, de eventual execução fiscal para a pessoa física.
Em se tratando de relação jurídica de natureza civil-empresarial, aplica-se a teoria de desvirtuamento da personalidade jurídica, que exige o elemento fraude e a demonstração de confusão patrimonial, ou seja, devem estar preenchidos os requisitos a que se refere o artigo 50 do Código Civil[2] para que se torne possível desconsiderá-la e para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigação – observe que não todas – sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou sócios beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
No mesmo norte, o Superior Tribunal de Justiça pacificou esse entendimento quando definiu que o encerramento da sociedade, ainda que irregular, aliado à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo, não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica[3].
Do mesmo modo como ocorre com a sociedade de responsabilidade limitada, o bloqueio dos bens de titular de Sociedade Limitada Unipessoal depende da instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que, como dito, o patrimônio particular não se confunde com o social da respectiva atividade empresarial.
Nesse cenário, para uma sociedade unipessoal evitar os riscos de se enquadrar em uma das hipóteses legais de desconsideração da personalidade jurídica, e assim manter o patrimônio particular do único sócio preservado, é primordial uma administração transparente, independente e idônea, sem desvio de finalidade, abusos ou confusão patrimonial.
A inadimplência pelo fracasso do negócio jurídico é risco a que se sujeitam todos aqueles que estabelecem relações comerciais e tributárias com a pessoa jurídica, não havendo que se falar, nas sociedades limitadas, em responsabilização pessoal direta dos sócios e/ou dos administradores que agiram e atuaram com atenção aos princípios da boa-fé, transparência, idoneidade e gestão lícita.
A eles, aqueles que se propuseram a enfrentar e tentar superar com garra, resiliência e criatividade as dificuldades do mercado, buscando empreender positivamente e atendendo à função social do contrato, é garantida a segurança de não terem que responder com seu patrimônio pessoal, até porque o sucesso do negócio também depende de fatores externos e internos imprevisíveis, pela fonte de incertezas possível nas diferentes etapas de uma atividade.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm>. Acesso em: 29 abr. 2024.
________. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 29 abr. 2024.
________. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 924.641/SP. desconsideração da personalidade jurídica. ofensa aos arts. 489 e 1.022 do cpc. inexistência. requisitos. súmula n. 7 do stj. agravo interno desprovido. Relator: Ministro João Otávio de Noronha, 12 de março de 2014. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202302748224&dt_publicacao=14/03/2024>. Acesso em: 29 abr. 2024.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 14.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado, 6ª ed. Editora Revista dos Tribunais: 2008, p. 249.
[1] BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm>. Acesso em: 29 abr. 2024.
[2] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 29 abr. 2024.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 924.641/SP. desconsideração da personalidade jurídica. ofensa aos arts. 489 e 1.022 do cpc. inexistência. requisitos. súmula n. 7 do stj. agravo interno desprovido. Relator: Ministro João Otávio de Noronha, 12 de março de 2014. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202302748224&dt_publicacao=14/03/2024>. Acesso em: 29 abr. 2024.